Por que a obesidade ainda é tão negligenciada?

Índice

Testemunhamos diariamente a batalha contra a obesidade, uma doença crônica complexa que afeta milhões de brasileiros. No entanto, a recente decisão da Conitec de não incorporar medicamentos essenciais como a semaglutida e a liraglutida ao Sistema Único de Saúde (SUS) ecoou como um duro e doloroso revés. Essa medida, infelizmente, reforça uma realidade alarmante em nosso país: a justiça social no acesso à saúde ainda se restringe a uma minoria, enquanto a obesidade, uma epidemia global, segue perigosamente à margem da prioridade que merece.

O Brasil se orgulha de excelentes programas de saúde pública em diversas áreas, mas a obesidade permanece como um elo frágil. Ela é a raiz primária de uma vasta gama de doenças crônicas devastadoras – do diabetes tipo 2 e as doenças cardiovasculares a vários tipos de câncer, doenças hepáticas, osteoarticulares, distúrbios psiquiátricos, entre outras. É uma condição que, comprovadamente, aumenta a mortalidade, reduz a expectativa e a qualidade de vida. É, portanto, inadmissível que ela continue sendo negligenciada e marginalizada.

É fundamental desmistificar a percepção de que a obesidade é uma falha de caráter ou meramente uma questão estética. Ela é, como reconhecido oficialmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por diversas associações médicas internacionais, uma doença crônica, progressiva e multifatorial. Sua complexidade vai muito além da simples ingestão calórica.

O que a ciência mostra e por que o acesso importa

A ciência demonstra que a predisposição genética desempenha um papel significativo, influenciando o comportamento alimentar e a regulação energética. Variações em genes relacionados ao controle do apetite e ao gasto de energia podem predispor os indivíduos à obesidade. Isso sublinha que, para muitos, a luta contra a obesidade começa muito antes de qualquer escolha individual de estilo de vida, estando profundamente enraizada em sua biologia. Comportamentos diretamente ligados ao estilo de vida – como padrões alimentares inadequados, sedentarismo e sono insuficiente – são, sim, relevantes. No entanto, a complexidade se aprofunda ao considerarmos o contexto: fatores socioeconômicos, como a renda familiar e a exposição a ambientes “obesogênicos” (com acesso limitado a alimentos saudáveis e pouca segurança para atividade física), exercem uma influência poderosa. Adicionalmente, o estresse crônico, transtornos psiquiátricos, certas condições médicas e o uso de medicamentos específicos também tecem essa complexa rede. A regulação do apetite e do balanço energético é um processo neurobiológico bastante complexo, e em muitos indivíduos com obesidade, essas respostas estão alteradas, afetando a percepção da saciedade e o controle sobre a alimentação.

O tamanho do problema: milhões de brasileiros sem tratamento adequado

Os números são alarmantes e não podem ser ignorados. A obesidade emergiu como um dos maiores desafios de saúde pública global. Sua prevalência tem crescido exponencialmente em todas as faixas etárias, impactando adultos e adolescentes em todo o mundo.

As consequências dessa epidemia são devastadoras, estendendo-se muito além do peso corporal. A obesidade é uma condição sistêmica que compromete múltiplos órgãos e funções, associada a mais de 200 doenças. Ela é uma via de entrada para o surgimento de  diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, doenças respiratórias crônicas, doenças hepáticas, problemas osteoarticulares e um risco significativamente elevado para diversos tipos de câncer, além de encurtar a expectativa de vida e afetar drasticamente a qualidade de vida.

É inquestionável a primazia de um estilo de vida saudável. Promover a atividade física regular, incentivar uma alimentação balanceada e combater veementemente os ultraprocessados, além de abordar o estresse e a qualidade do sono, são e sempre serão pilares inegociáveis no manejo da obesidade. No entanto, para a vasta maioria das pessoas que vivem com a doença obesidade, as mudanças de estilo de vida, por si só, não são suficientes para alcançar e sustentar uma perda de peso clinicamente significativa. É crucial diferenciar o tratamento da obesidade – uma condição médica complexa – do mero desejo social de emagrecer. A intrincada fisiologia da obesidade, marcada por alterações neurobiológicas e metabólicas profundas, exige uma abordagem multifacetada. E é precisamente aqui que a medicina, impulsionada por avanços científicos, oferece soluções ainda mais eficazes, sempre, é claro, apoiadas por um acompanhamento longitudinal rigoroso e pela indispensável abordagem comportamental, sempre!

Não se discute mais a importância dos medicamentos no tratamento dessa doença. O advento das terapias baseadas em incretinas, como os análogos do GLP-1 (liraglutida e semaglutida) e os análogos duplos GLP-1/GIP (como a tirzepatida), revolucionou o campo da medicina da obesidade. Essas medicações, ao mimetizarem hormônios que regulam o apetite e promovem a saciedade, demonstram alta eficácia na perda de peso. Além disso, estudos clínicos robustos confirmam sua capacidade de reduzir riscos cardiovasculares e até mesmo a mortalidade em pacientes com obesidade.

Reconhecemos que a resposta individual a esses tratamentos pode variar e que alguns pacientes podem experimentar efeitos colaterais. Essa variabilidade, no entanto, não anula a eficácia para a maioria; apenas reforça a necessidade de um tratamento individualizado.

Impacto econômico e social de tratar a obesidade

Em um país que se orgulha de um sistema de saúde público e universal como o SUS, é inadmissível que uma doença com tamanha magnitude e comorbidades potencialmente graves continue sendo marginalizada. Enquanto excelentes programas de saúde pública existem para várias outras condições, a obesidade – que exige um manejo abrangente, multidisciplinar e de longo prazo – é sistematicamente privada de recursos que poderiam transformar vidas.

A falta de acesso a esses medicamentos, geralmente devido ao seu alto custo, cria uma disparidade inaceitável. Aqueles com maior poder aquisitivo acessam tratamentos modernos e eficazes, enquanto a vasta maioria da população, dependente do SUS, é condenada a uma luta desigual contra uma doença que, sabidamente, rouba anos de vida saudável. Esta é a antítese da justiça social.

É imperativo que o Brasil, por meio de suas políticas públicas, não apenas reconheça a obesidade como um fator de risco, mas a trate como a doença crônica que é, garantindo acesso a formas de tratamento comprovadamente eficazes. Isso inclui, inquestionavelmente, os análogos do GLP-1 e os duplos GLP-1/GIP, que deveriam ser integrados a um robusto plano de tratamento clínico e acompanhamento de longo prazo.

É necessário aqui também reconsideramos o entendimento, reiterado pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, de que os análogos de GLP-1 seriam intrinsecamente menos custo-efetivos que a cirurgia bariátrica. Embora a cirurgia seja uma intervenção transformadora e frequentemente custo-efetiva em desfechos de perda ponderal para muitos casos de obesidade, a comparação direta costuma desconsiderar custos indiretos e de longo prazo do procedimento: risco de complicações e reinternações, eventuais cirurgias revisionais, suplementação vitamínico-mineral vitalícia para manejo de deficiências, necessidade de suporte psicológico contínuo e seguimento multidisciplinar, além de perdas de produtividade, afastamentos laborais e sobrecarga de cuidadores. Já os análogos de GLP-1 ampliam o alcance terapêutico para pacientes que não se qualificam, não desejam ou têm contraindicações à cirurgia, permitindo controlar comorbidades e evitar a progressão da doença — o que também se traduz em economia sistêmica. Portanto, a questão não é excluir, mas integrar estratégias, reconhecendo o valor relativo de cada modalidade em um cuidado mais amplo, personalizado e equitativo. A incorporação dessas medicações ao SUS não é um luxo; é uma necessidade premente de saúde pública e um imperativo de justiça social. Somente através de uma abordagem abrangente e equitativa poderemos, de fato, combater a obesidade, assegurando uma vida mais longa, com mais qualidade, saudável e digna a todos os brasileiros. E há um benefício adicional crucial: combater firmemente a obesidade gerará uma economia substancial de recursos em outras esferas, ao reduzir os gastos com as complexas complicações da própria doença e das condições associadas, além de melhorar a expectativa e a qualidade de vida, e aumentar a produtividade individual em diversos setores. É hora de agir com responsabilidade e visão de futuro. Torna-se, portanto, urgente e indispensável a revisão de certas medidas.

Texto escrito e revisado por:

Dra. Jacy Maria Alves

Endocrinologia | CRM 27085 | RQE 17834 e RQE 17665

Dicas de Saúde