Prezados colegas e leitores,
Com o devido respeito à perspectiva apresentada no artigo “Lifestyle medicine shouldn’t be a separate branch of medicine” da Dra. Margaret McCartney, gostaria de compartilhar uma reflexão que nasce de anos de prática e de uma observação atenta das lacunas na formação médica e na entrega de saúde.
É irônico, mas a Medicina do Estilo de Vida se tornou um tópico de sucesso e, sim, um foco de busca por certificação, justamente porque preenche uma grande lacuna na formação médica. Pensando na minha própria experiência, ainda na época da faculdade, aprendíamos profundamente sobre as doenças, os medicamentos e as cirurgias. Mesmo vindo de uma universidade federal como a UFSC, onde mergulhávamos na prática desde o primeiro ano nas Unidades Básicas de Saúde e discutíamos os determinantes sociais da saúde de forma contundente, ainda sentíamos uma desconexão. Aprendíamos a teoria da educação em saúde, mas o “como” ajudar um paciente a mudar hábitos de verdade — seja para tratar, prevenir ou até mesmo alcançar a remissão de doenças crônicas — não fazia parte central da nossa formação. A metodologia para guiar a mudança de comportamento, que é a espinha dorsal para a saúde a longo prazo, era, infelizmente, o elo perdido no nosso aprendizado e, ao que tudo indica, permanece assim na maioria dos currículos atuais.
Nossa educação era predominantemente baseada em um modelo reativo: “o paciente adoece, a gente trata”. O que faltou, e ainda falta em grande parte dos currículos, é o “como”. Como, de fato, ensinar a um paciente a importância do sono de qualidade e ajudá-lo na adesão? Qual o método para auxiliá-lo a incorporar o exercício físico no dia a dia? Como orientar sobre nutrição de forma prática e eficaz, sem parecer um sermão, e somar, de verdade, ao trabalho do nutricionista? Como facilitar esse processo e fornecer os recursos necessários para que a mudança seja sustentável?
Saíamos da faculdade com o conhecimento do “o quê” era bom — dormir bem, comer melhor, se exercitar. Isso, convenhamos, todos já sabem, não é nenhuma novidade. A questão é que não tínhamos a metodologia para guiar o paciente nesse processo. A Medicina do Estilo de Vida, com seus pilares e sua abordagem estruturada, centrada no COMPORTAMENTO, é exatamente o que preenche essa lacuna. Ela não é um “ramo separado”, mas sim uma forma de colocar em prática o que sempre soubemos ser essencial, mas nunca fomos sistematicamente treinados para fazer.
Concordo com a Dra. McCartney em um ponto crucial: a Medicina do Estilo de Vida não deveria ser um ramo separado da medicina. No entanto, para que essa afirmação se sustente e não seja apenas uma expectativa utópica, toda a formação médica – desde a graduação na faculdade, passando pela residência e especialmente nas especialidades clínicas – precisaria ser fundamentalmente reformulada. Somente quando a metodologia da mudança de comportamento, a compreensão profunda dos determinantes sociais da saúde e a aplicação prática da promoção da saúde forem integradas ao core de nosso currículo, deixando de ser meros apêndices, é que poderemos verdadeiramente afirmar que a Medicina do Estilo de Vida não é uma especialidade à parte, mas a própria essência do bom cuidado.
A ponte entre o conhecimento e a prática
A Medicina do Estilo de Vida não se trata de inventar a roda, mas de dar aos médicos as ferramentas que tanto precisávamos. Ela nos ensina a metodologia para trabalhar com as bases da saúde, de uma forma que seja eficaz e que gere resultados duradouros. É por isso que, para muitos de nós, ela não é apenas um “extra”, mas uma forma de medicina que faz sentido e que ressoa com a nossa responsabilidade de promover saúde. Nossa formação deveria ter nos dado essa base, mas, como sabemos, não deu. Por isso, a busca por uma certificação ou aprofundamento nessa área é um caminho natural para quem quer oferecer um cuidado que vá além da receita de um medicamento. O objetivo não é medicalizar hábitos intrínsecos à vida humana, mas usar a ciência da mudança comportamental para desmistificar e orientar sobre o que realmente importa para a saúde. Em essência, é a materialização do cuidado baseado em valor, do qual tanto falamos, mas que nem sempre conseguimos implementar de forma robusta.
O cuidado baseado em valor, embora popularizado no setor de negócios por Michael Porter e Elizabeth Teisberg, transformou a forma como enxergamos a medicina. A ideia central é simples, mas profundamente impactante: o foco não deve ser o volume de serviços prestados (o número de consultas ou exames), mas sim a melhora real e duradoura na saúde do paciente, considerando o custo para alcançar esse resultado. Na prática, o cuidado baseado em valor nos convida a pensar além do tratamento agudo e nos leva a valorizar intervenções que geram resultados significativos para a qualidade de vida do paciente. É nesse ponto que a Medicina do Estilo de Vida se encaixa perfeitamente, oferecendo um caminho para tratar as causas das doenças crônicas de forma eficiente e sustentável, gerando, assim, mais “valor” para todos os envolvidos no sistema de saúde.
A medicina tradicional — e concordo plenamente que é a única medicina — já é, em sua essência, extremamente robusta e indispensável. No entanto, muitas vezes, foca de forma predominante em desfechos clínicos “duros”, como níveis de glicemia ou pressão arterial. E claro, a importância desses parâmetros é inquestionável! O cuidado baseado em valor vai além, incorporando desfechos que são cruciais para o paciente, como qualidade de vida, capacidade funcional, satisfação e a redução de sintomas. Um paciente com diabetes, por exemplo, pode ter a glicemia controlada, mas se a sua qualidade de vida não melhora, se ele não tem energia ou bem-estar, o “valor” entregue foi baixo. A Medicina do Estilo de Vida, com seu foco na adesão a hábitos saudáveis e na autonomia do paciente, atinge esses desfechos de forma direta e comprovada, potencializando os efeitos das intervenções medicamentosas quando necessárias.
Determinantes Sociais de Saúde
A crítica de que a Medicina do Estilo de Vida foca em intervenções individuais, desviando o olhar dos determinantes sociais de saúde, como a pobreza e a influência das indústrias, é pertinente e fundamental. Ninguém em sã consciência negaria a influência avassaladora desses fatores na saúde da população. No entanto, é crucial que essa observação não se torne uma paralisia para a ação no nível individual. Enquanto aguardamos e lutamos por políticas públicas – que são, de fato, a solução em larga escala – não podemos cruzar os braços diante do paciente que está à nossa frente. É nesse espaço de encontro entre médico e paciente que a Medicina do Estilo de Vida oferece as ferramentas para empoderar o indivíduo a fazer as melhores escolhas possíveis dentro de suas circunstâncias, a navegar em um ambiente muitas vezes hostil à saúde. Não se trata de substituir a saúde pública, mas de complementar. O médico, ao atuar na mudança de comportamento, pode ser um agente catalisador, ajudando o paciente a utilizar os recursos disponíveis e a buscar sua própria agência, mesmo diante de estruturas sociais adversas. A atenção ao indivíduo não exclui, mas, na verdade, ressalta a urgência da ação coletiva.
Criação de um Mercado e Risco de Charlatanismo: Um Reflexo do Sistema, Não da Essência
A preocupação com a criação de um mercado oneroso e o risco de práticas não baseadas em evidências é válida e deve ser combatida com rigor. No entanto, essa crítica, embora importante, parece desviar o foco da essência da Medicina do Estilo de Vida para as falhas de um sistema que a negligenciou. A existência de consultas caras e a proliferação de charlatães não é um problema intrínseco à Medicina do Estilo de Vida, mas um sintoma de uma demanda não atendida pelo sistema de saúde tradicional e de uma crise que assola a profissão médica.
O médico, que um dia foi idealista, muitas vezes se vê esmagado por um sistema que o pressiona por consultas de 10-15 minutos, sem a profundidade devida para cada caso individual, e com uma remuneração que não condiz com seus anos de estudo e dedicação. Nessa realidade desafiadora, muitos profissionais, em busca de oferecer um cuidado mais completo e com a devida atenção que o paciente merece – e que o sistema não permite –, buscam alternativas. É essa lacuna, essa insatisfação de ambos os lados (médicos e pacientes), que abre espaço para a formação de um mercado onde, infelizmente, ao lado de práticas sérias e baseadas em evidências, proliferam também as duvidosas.
Se as práticas da Medicina do Estilo de Vida fossem adequadamente incorporadas à formação médica e aos serviços de saúde acessíveis, de forma que o profissional tivesse tempo e remuneração justa para aplicá-las, provavelmente haveria menos espaço para a mercantilização e o charlatanismo que a Dra. McCartney justamente critica. O problema não é a abordagem em si, que é cientificamente embasada e visa ao bem-estar do paciente, mas a falha do sistema em integrá-la e regulamentá-la adequadamente na medicina convencional. Cabe a nós, como comunidade médica, abraçar e proteger as partes legítimas e baseadas em evidências da Medicina do Estilo de Vida, integrando-as e garantindo que sejam acessíveis e devidamente aplicadas, afastando assim as práticas duvidosas e resgatando a dignidade do cuidado médico.
Redução de Custos a Longo Prazo
A maior crítica ao modelo tradicional de “fee-for-service” (pagamento por serviço) é que ele incentiva o volume, não o valor. Isso pode gerar desperdícios, exames desnecessários e procedimentos ineficazes. O cuidado baseado em valor, ao contrário, incentiva a eficiência. Estudos mostram que intervenções focadas na prevenção e em mudanças de estilo de vida, como as propostas pela Medicina do Estilo de Vida, podem reduzir significativamente custos a longo prazo, ao diminuir a necessidade de hospitalizações, reinternações e o uso de medicamentos (muitas vezes de custo bastante elevado) para tratar complicações de doenças crônicas, que, obviamente, nesse cenário, são completamente necessários e vitais. A Medicina do Estilo de Vida não é um substituto, mas um complemento que pode diminuir a carga sobre o sistema.
Promoção de uma Abordagem Multidisciplinar
O cuidado baseado em valor reconhece que nenhum médico sozinho consegue resolver todos os problemas de um paciente. Para maximizar o valor, é essencial um trabalho colaborativo e coordenado entre médicos, nutricionistas, educadores físicos, fisioterapeutas, psicólogos, entre outros profissionais de saúde e até mesmo profissionais da área da educação. A Medicina do Estilo de Vida, por sua própria natureza e sua complexidade no apoio à mudança de comportamento, já opera com essa visão integrada, incentivando a colaboração e a referência cruzada entre especialidades, fortalecendo a equipe de saúde como um todo.
Portanto, a Medicina do Estilo de Vida de fato não deveria ser um ramo separado da medicina. No entanto, essa realidade só será alcançada quando ela for integralmente absorvida pela formação médica padrão, transformando-se em um aprofundamento essencial pelo qual todo profissional de saúde deverá passar. É essa integração plena que nos equipará com as metodologias eficazes para ir além do tratamento de consequências, permitindo-nos agir sobre as causas subjacentes das doenças crônicas. Esta abordagem gerará um valor imenso para o paciente, para o sistema de saúde e para nós, médicos, que buscamos um impacto verdadeiramente transformador. Representa uma mudança fundamental de mentalidade, de um modelo reativo e fragmentado para um modelo proativo e integrado, focado em resultados que são capazes de redefinir a saúde e honrar o juramento que fizemos.
Referência